Quem assistiu ao capítulo de terça-feira (24) da novela ‘Do Outro Lado do Paraíso’ ficou provavelmente chocado, assim como eu, quando Sophia (Marieta Severo) chama a filha Estela (Juliana Caldas) de “monstrengo”. “Tenho horror. Devia ter vendido ela pra um circo”, vomitava a gananciosa fazendeira, vilã da novela.
A pequena atriz de 1,22 metro representa na nova trama das nove da Globo uma legião de pessoas brasileiras que vivem com nanismo e que, infelizmente, ainda não invisíveis para a sociedade. Ou enxergadas com desprezo, sendo motivo de piada ou chacota. Ou mesmo vistas apenas como personagens de um infeliz e grosseiro circo de horrores.
Eu mesmo trabalhei até bem pouco tempo atrás com um chefe que fazia piadas das pautas que envolviam a questão do nanismo no Estado do Rio de Janeiro. Uma vergonha para qualquer ser humano comum, que dirá para um jornalista que defende a bandeira do jornalismo ético, mas só da boca para fora. E substitui a obrigação de ajudar a dar voz às minorias pelo vergonhoso papel de contribuir para disseminar ainda mais preconceitos.
Em referência ao Dia Nacional de Combate ao Preconceito contra o Nanismo (25 de outubro), Vida & Ação, além de ouvir especialistas, volta a falar com a mãe de uma menina com nanismo. Gisele Rocha, 30 anos, jornalista e mãe de Luiza, já havia nos contado sua história ano passado (veja aqui). Hoje, comemora que a filha, aos 6 anos, está ótima clinicamente, já está inclusa na escola e faz todas as atividades exatamente como as crianças sem deficiência.
“A Luiza é bastante amada pelos coleguinhas. Como a pessoa com nanismo não tem nenhum problema intelectual, a única limitação é a adaptação à estrutura da escola: mesas, cadeiras, privadas. Isso ainda é um desafio. A luta agora é pela acessibilidade e aceitação dela mesmo. Estamos na fase de fazer ela entender o que é o nanismo. O maior problema é a autoaceitação. A partir do momento que a pessoa se aceitar, fica mais fácil de encarar a crueldade e os apontamentos da população”, conta Gisele.
Para ela, a novela é uma grande aliada na luta contra o preconceito contra o nanismo. “O nanismo ainda é uma deficiência com tabus e muito preconceito. As pessoas ainda levam para a área do humor e da comédia. A novela vai mostrar as dificuldades e o dia a dia de uma pessoa de baixa estatura na realidade. As lendas urbanas e a cultura que vem de muito tempo prejudicam nossa luta contra o preconceito”, ressalta a jornalista, que assessora a Associação de Nanismo do Estado do Rio de Janeiro (Anaerj).
Desafio vital é manter o peso sob controle
Uma das velhas e questionáveis piadas em torno do nanismo é a que diz, de forma grosseira, que “ninguém nunca viu um enterro de anão”. “Sobre a longevidade, conheço pessoas com bastante idade”, diz a mãe de Luiza, uma das principais ativistas da causa no Rio de Janeiro. Porém, ela chama a atenção para os graves problemas de saúde que uma pessoa com nanismo pode sofrer.
“O nanismo não leva a óbito, o que leva são as síndromes que podem estar atreladas à qualidade de vida da pessoa. Pessoas com nanismo não podem engordar, isso sobrecarrega a coluna e articulações, além dos órgãos vitais. Atividades físicas e tratamentos como fisioterapia, hidroginástica, natação são essenciais. O principal desafio da pessoa com nanismo é manter o peso sob controle”, ressalta Gisele.
Complicação entre crianças pode levar à morte súbita
Uma das complicações que comprometem a vida de pessoas com nanismo é a que atinge a medula, sendo necessário fazer uma intervenção cirúrgica até mesmo para a pessoa respirar. Segundo ela, como os órgãos internos são diminuídos, há o risco de a pessoa morrer dormindo por conta do estreitamento da medula.
A neurocirurgiã pediátrica Flávia Abreu, do Instituto Fernandes Figueira (IFF), no Rio de Janeiro, explica que são diversas as causas de nanismo. Dentre as várias mutações genéticas possíveis, a acondroplasia é a mais frequente, acometendo um em cada 25 mil nascimentos, e a que tem mais complicações neurocirúrgicas.
“Podemos dividir essas complicações por faixas etárias. Na população adulta são mais comuns as alterações degenerativas de coluna lombar, além da hiperlordose e até escoliose”, explica. Já entre as crianças, os maiores riscos são causados pela hidrocefalia e, principalmente, pela estenose de forame magno. Ela acomete 20% da população (em média) e pode levar à morte súbita devido à compressão do tronco cerebral com consequente apneia.
Cirurgia gratuita pelo SUS corrige síndrome
Segundo a especialista, a cirurgia para correção e prevenção da complicação são realizadas pelo neurocirurgião, preferencialmente pelo neurocirurgião pediátrico com alguma experiência nessa população devido a algumas peculiaridades anatômicas. No Rio, o IFF se destaca como um centro de referência no tratamento de patologias neurocirúrgicas pediátricas e possui, no momento, mais de 30 crianças acondroplásicas em acompanhamento.
“O diagnóstico é feito através de exame neurológico detalhado e exames de imagem como ressonância magnética e tomografia computadorizada. As crianças são acompanhadas continuamente e é feita a intervenção cirúrgica, se necessária”, ressalta Flávia. Por conta do projeto de mestrado dela na área, esses pacientes conseguem atendimento gratuito pelo SUS, após diagnóstico de acondroplasia. Todos os pacientes nestes casos já são referenciados pela própria Anaerj.