Em meio ao mar de lama que submerge da CPI da Covid sobre a gestão da pior crise sanitária do século no Brasil e à avalanche de fake news disseminadas por negacionistas que tentam diariamente descredibilizar as vacinas, mais uma notícia cai como uma bomba no colo dos brasileiros aflitos. Dados oficiais do Ministério da Saúde apontam que pelo menos 26 mil doses vencidas da vacina AstraZeneca foram aplicadas em diversos postos de saúde do país, o que compromete sua proteção contra a Covid-19.

De acordo com um levantamento do jornal Folha de S. Paulo, publicado nesta sexta-feira (2/7), até o dia 19 de junho, os imunizantes com o prazo de validade expirado haviam sido utilizados em 1.532 municípios brasileiros. A campeã no uso de vacinas vencidas é Maringá, reduto eleitoral de Ricardo Barros (PP), líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, citado na CPI da Covid por suposto envolvimento em um esquema de favorecimento da vacina indiana Covaxin. A cidade paranaense vacinou 3.536 pessoas com o produto da AstraZeneca fora da validade (primeira dose em todos os casos).

Depois de Maringá, aparecem as cidades de Belém (PA), com 2.673, São Paulo (SP), com 996, Nilópolis (RJ), com 852, e Salvador (BA), com 824. As demais cidades aplicaram menos de 700 vacinas vencidas, sendo que a maioria não passou de dez doses. Além disso, outras 114 mil doses da vacina AstraZeneca que foram distribuídas a estados e municípios dentro do prazo de validade já expiraram. Não está claro se foram descartadas ou se continuam sendo aplicadas.

Como saber e o que fazer se você tomou vacina do lote vencido?

O lote pode ser conferido na carteira individual de vacinação. Quem tiver recebido uma dose de um desses oito lotes de AstraZeneca após a data de validade (veja gráfico abaixo) deve procurar uma unidade de saúde para orientações e acompanhamento.

Além disso, de acordo com o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19, quem tomou imunizante vencido precisa se revacinar pelo menos 28 dias depois de ter recebido a dose administrada equivocadamente. Na prática, é como se a pessoa não tivesse se vacinado.

O plano define, também, que cada indivíduo vacinado seja identificado com o lote da imunização recebida, o produtor da vacina e a dose aplicada. Isso é feito justamente para acompanhamento do Ministério da Saúde e eventual identificação de erros vacinais.

O DataSUS (sistema de informações do Ministério da Saúde) também identifica todas as pessoas imunizadas com um código individual, acompanhado de informações sobre idade, grupo prioritário de vacinação, data da imunização e lote da vacina recebida.

Já a data de validade de cada lote vacinal consta de outro sistema do governo federal, o Sage (Sala de Apoio à Gestão Estratégica), que registra os comprovantes de entrega dos imunizantes contra Covid-19 por estado. Em cada um desses recibos há informações públicas sobre o número do lote vacinal, a data de validade, o fabricante e a data de entrega.

A Folha cruzou as duas bases — DataSUS e Sage— a partir do número do lote das vacinas. Foram consideradas todas as imunizações do país contra Covid-19 até 19 de junho. O levantamento inédito mostra que, até essa data, um total de 25.935 doses de oito lotes de AstraZeneca foram aplicadas fora da validade. Metade desses lotes veio do Instituto Serum da Índia; a outra metade, da Opas (Organização Pan-Americana de Saúde).

As vacinas desses lotes foram distribuídas de janeiro a março pelo governo federal para todos os estados do país antes do vencimento. Elas somam quase 3,9 milhões de doses, das quais cerca de 140 mil não foram utilizadas dentro do prazo de validade. Dessas, até o dia 19 de junho, 26 mil tinham sido aplicadas já vencidas.

A maioria (70%) das doses aplicadas depois da validade é de um mesmo lote do Instituto Serum, identificado como “4120Z005”. O bloco venceu em 14 de abril, mas continuou sendo aplicado depois dessa data pelo país.

Paraná e Pará — que receberam os imunizantes desse lote em 24 de janeiro, logo depois de o primeiro lote de AstraZeneca da Índia ter chegado ao Brasil— têm a maior quantidade de registros de doses após o vencimento. Em Maringá e Belém, quase todas as doses vencidas foram ministradas especificamente nos dias 22 de abril e 11 de maio.

A capital do Pará também registrou 27 doses aplicadas após vencimento de outro lote, identificado como “CTMAV501”, que veio da Opas e expirou em 30 de abril. São Paulo também está entre os estados com maior quantidade de registros de doses aplicadas depois do vencimento: foram 3.648 unidades dos oito lotes vencidos de AstraZeneca ministrados (1.820 delas do mesmo lote indiano “4120Z005”).

Rio divulga lista de quem pode ter recebido vacina vencida

No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Saúde divulgou nota informando que “recebeu todos os lotes de vacinas do Ministério da Saúde dentro do prazo de validade e os distribuiu imediatamente para as unidades de saúde”. A pasta verifica se, de fato, houve alguma aplicação de doses após o vencimento.

“Caso isso tenha acontecido, a unidade entrará em contato com os usuários para realizar a revacinação”, informou. Os casos suspeitos de vacinação fora da validade, com data da aplicação da vacina, data de nascimento e primeiros dígitos do CPF das pessoas vacinadas, PODEM SER CONSULTADOS CLICANDO AQUI.

A Secretaria de Saúde de Nilópolis informou que já instaurou sindicância para apurar os fatos denunciados pela Folha de S. Paulo e iniciou um levantamento das pessoas que teriam tomado as doses das vacinas dos lotes que estariam fora da validade. “Caso se confirme a aplicação de vacinas fora da validade, as pessoas serão imediatamente convocadas a tomar a nova dose do imunizante, no prazo de 28 dias, de acordo com o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19″.

Fiocruz explica que lotes vieram do Instituto Serum e da Opas/OMS

Em nota, a Fiocruz esclareceu que os lotes não foram produzidos pela instituição. “Parte dos lotes (com numeração inicial 4120Z) é referente aos quantitativos importados prontos do Instituto Serum, da Índia, chamada de Covishield, e entregues pela Fiocruz ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde (MS) em janeiro e fevereiro deste ano. Os demais lotes apontados foram fornecidos pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS)”, informou.

Ainda segundo a Fundação, “todas as doses das vacinas importadas da Índia (Covishield) foram entregues pela Fiocruz em janeiro e fevereiro dentro do prazo de validade e em concordância com o MS, de modo a viabilizar a antecipação da implementação do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, diante da situação de pandemia”. A Fiocruz informou também que está apoiando o PNI na busca de informações junto ao fabricante, na Índia, para subsidiar as orientações a serem dadas pelo Programa àqueles que tiverem tomado a vacina vencida (veja aqui).

O Ministério da Saúde informou “que acompanha rigorosamente todos os prazos de validade das vacinas Covid-19 recebidas e distribuídas” e que “as doses entregues para as centrais estaduais devem ser imediatamente enviadas aos municípios pelas gestões estaduais. Cabe aos gestores locais do SUS o armazenamento correto, acompanhamento da validade dos frascos e aplicação das doses, seguindo à risca as orientações do Ministério.”

São Paulo confirma; Maringá e Belém negam

Em nota, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo confirmou cerca de 4.000 doses ministradas após validade. A pasta disse que “orienta os municípios sobre a aplicação da vacinação contra a Covid-19 e a importância da verificação da data de validade antes do uso do frasco de uma vacina, inclusive com documentos técnicos com todas as condutas necessárias. Todas as grades são distribuídas dentro do prazo de validade.” Os casos constatados de aplicação de vacina fora da validade, de acordo com a pasta, são avaliados individualmente para definição da conduta apropriada definida pelo PNI (Programa Nacional de Imunizações).

Já a Secretaria Estadual de Saúde do Paraná informou que há um problema de integração dos dados entre municípios e o sistema federal, “um erro de leitura da data de exportação do dado”. A pasta não explicou, no entanto, como esse problema interfere na data de validade das doses de vacina ministradas no estado, que estão vinculadas aos lotes no Sage.

Na cidade de Maringá, a Secretaria Municipal de Saúde negou a informação da Folha. “O lançamento no Sistema Conect SUS está diferente do dia da aplicação da dose. Isso porque, no começo da vacinação, a transferência de dados demorava a chegar no Ministério da Saúde, levando até dois meses. Portanto, os lotes elencados são do início da vacinação e foram aplicados antes da data do vencimento. Concluindo, não houve vacinação de doses vencidas em Maringá e sim erro no sistema do SUS”, disse Marcelo Puzzi, secretário da Saúde de Maringá.

A Secretaria Municipal de Saúde de Belém também negou que nenhuma dose de imunizante vencido foi aplicada na cidade. “Entretanto, é possível que tenha havido erros nos registros, especialmente nas primeiras etapas da campanha de vacinação em massa, quando as anotações eram feitas manualmente em fichas de papel e posteriormente digitadas”, afirma por email.

De acordo com os dados oficiais do Ministério da Saúde, no entanto, 99,7% dos registros de AstraZeneca após validade em Belém são de segunda dose. Foram ministradas, portanto, a partir de abril (a vacinação começou no país em janeiro e o intervalo entre doses desse imunizante é de 90 dias).

Quem estiver na relação pode aguardar o contato da equipe de saúde ou, se preferir, procurar a unidade em que se vacinou na segunda-feira (5/7), a partir das 11h, para verificar se houve um erro no registro, que será feito o ajuste. Em caso de constatação de que recebeu de fato dose vencida, será realizada a revacinação.

Astrazeneca é a mais aplicada no Brasil

Hoje, a vacina da farmacêutica AstraZeneca, produzida em parceria com a Universidade de Oxford e envasada no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é a mais usada no país, respondendo por 57% das doses aplicadas neste ano. A imensa maioria foi utilizada de acordo com as orientações do fabricante.

Todos os imunizantes expirados integram oito lotes da AstraZeneca importados ou adquiridos por consórcio. Um deles passou da validade no dia 29 de março. O que venceu há menos tempo estava válido até 4 de junho.

A validade das vacinas contra Covid-19 depende da tecnologia e dos insumos utilizados no desenvolvimento do imunizante. Essas informações integram os dados analisados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para regulação dos imunizantes utilizados no país.

A AstraZeneca e a Pfizer duram até seis meses. A Janssen, com validade original definida em três meses, agora pode ficar armazenada por até quatro meses e meio. A Coronavac tem duração de um ano —o primeiro lote dessa vacina utilizado no Brasil venceria somente em novembro.

Da Folha de SP, com Redação

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