N. perambulava pelas ruas de Niterói, desorientado, quando foi resgatado pelo Samu e levado para o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ). Era calado, isolado, com prolongados momentos de apatia. Pedia para ir embora, mas quando os profissionais esboçaram um sinal de alta, ele imediatamente voltou atrás: “É, não está dando pra ir agora não, não estou bom ainda”.

O paciente da enfermaria masculina de um dos últimos manicômios ainda em atividade no Estado do Rio de Janeiro é um dos casos relatados no livro Psicanálise e Psiquiatria: Entrevistas de pacientes na transmissão e no ensino’. O psicanalista e psicólogo Sérgio Bezz lança sua obra pela Editora Appris neste dia 3 de agosto, às 18h, no Theatro Municipal de Niterói.

O livro apresenta o trabalho da tese de doutorado de Bezz pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e, de quebra, revela fatos importantes da história da unidade, que completa 70 anos em 2023. Ao mesmo tempo, conduz o leitor a um caminho que se confunde com a própria história da Psicanálise e da Psiquiatria em Niterói.

Inaugurado em 1953, o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba passou por muitas transformações na assistência psiquiátrica pública, decorrentes de avanços nos campos técnico-político-social, em grande parte, provocadas pelo movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, iniciado na década de 1970, quando Bezz nem sonhava em ser um profissional da saúde mental.

“Propor uma internação sem abrir mão de conquistas fundamentais da Reforma Psiquiátrica Brasileira foi o que encontrei no Hospital de Jurujuba, com a particularidade da busca da inclusão da palavra dos pacientes e daqueles que o acompanham a partir de uma clínica sob transferência”, ressalta o autor, que chegou à instituição em 1997, já profissional formado em Psicologia.

Hospital não é o único recurso para o cuidado intensivo de surtos agudos

Em mais de 20 anos atuando no hospital, Bezz foi por mais de uma década responsável por funções no ensino e na supervisão de equipes, especialmente do Albergue e do Acompanhamento Terapêutico das enfermarias. Até que chegou à direção, em 2021.

O psicólogo e psicanalista é testemunha ocular de uma história que está prestes a se encerrar já que as novas diretrizes do tratamento psiquiátrico preveem a desinstitucionalização dos pacientes. Na sua opinião, o tratamento vai além das paredes do hospital.

“A experiência trazida neste livro em contexto hospitalar psiquiátrico não deve levar a supor a necessidade do hospital como único recurso para o cuidado intensivo em momentos de surtos agudos, ou de graves desenlaces de psicóticos no campo social“, diz Bezz.

Para o especialista, mais do que um trabalho de doutorado, o livro éuma aposta ética em dar um lugar à existência da loucura como expressão do humano, e também à discursividade própria do psicótico“. De fato, é leitura fundamental e necessária para profissionais e estudantes da área de saúde mental e para todos aqueles que se interessam pelo tema.

E tem mais: a obra foi totalmente escrita durante o período da pandemia da Covid-19, que acabou reforçando muito a necessidade de cuidados especiais com a saúde mental – senão de toda – ao menos de boa parte da sociedade. Um momento em que, segundo o autor, “vivemos tempos de risco de morte, simbólica e real’.

Por isso, Psicanálise e Psiquiatria: Entrevistas de pacientes na transmissão e no ensino’ é, como diz ele, também “uma forma de resistência, de preservação de nossa memória, da nossa história”.

Da solidão à volta da inspiração para escrever músicas

Sobre N., um dos personagens reais destacados na obra e que abre esta matéria, talvez seja certo dizer que a solidão sempre esteve acompanhada de sua dita ‘loucura’.

E quem de nós não enlouqueceu um pouco trancafiado em casa durante a pandemia por causa de um ‘inimigo invisível’, forçado por um confinamento compulsório jamais imaginado? Não parecia filme de ficção?

Aos profissionais do hospital, N. confessava sua grande solidão, abandono e tentativas de se encontrar na igreja. Morava sozinho num imóvel do Minha Casa, Minha Vida. “E como é que é morar sozinho?”, pergunta o profissional. “Faço algumas coisas, o que posso.”

Foto interna das instalações do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (Reprodução de internet)

Trecho do livro:
“Na entrevista, a primeira fala de N. tem a força de uma mensagem direta, sem rodeios e sintética: ‘estava largado, não tinha direção, não tinha nada, sem direção, sem nada […] Não tenho ninguém’. Um sujeito sozinho no mundo, sem direção, reduzido a nada – assim se refere N. à sua existência.”

Com o tratamento psiquiátrico e a ajuda da Psicanálise, N. vai interagindo com os profissionais, confiando e revelando seu talento de “escrever música”: samba e pagode… de Jesus”. Aos poucos, vai mostrando suas músicas. A inspiração voltou. “Parece até que eu nasci de novo”, diz, em uma das entrevistas relatadas no livro.

Trecho do livro:
“O impacto de sua frase final, ‘parece até que eu nasci de novo’, comoveu muitos presentes. A comoção de ver nascer um sujeito dependeu daquela circunstância do dispositivo, da entrevista, do público. Sua palavra ganha vigor, forma, entonação, ritmo, musicalidade:

‘A gente não pode desistir. A gente não sabe de onde vai vir, mas tem que acreditar que em algum lugar o sujeito pode se engatar ali com alguma coisa. Porque é isso, é um troço completamente surpreendente’, diz Eduardo Rocha, logo após a entrevista.”

Eduardo Rocha era o diretor do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba na época das entrevistas que constam do livro. Na ocasião, Sérgio Bezz já fazia parte do corpo profissional do hospital, mas só assume sua direção em 2021.

Sobre o autor

Sérgio Bezz é psicanalista e psicólogo, com especialização em psicanálise e saúde mental pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É membro do Espaço-Oficina de Psicanálise (Rio de Janeiro).

Ele ingressou nos quadros do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ) em 1997. Antes de se tornar diretor da unidade, Bezz foi por mais de uma década responsável por funções no ensino e na supervisão de equipes do hospital, especialmente do Albergue e do Acompanhamento Terapêutico das enfermarias.

Ficha técnica

Título: Psicanálise e Psiquiatria: Entrevistas de pacientes na transmissão e no ensino

Editora: Appris

Autor: Sergio Bezz

Onde comprar:

Ebook – Google Play Livros, Amazon, Kobo, Apple Books, entre outras plataformas digitais

Livro físico –  site da Editora Appris

Com informações da Assessoria do autor

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