Neste domingo (9) faz uma semana que o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, localizado em São Cristóvão, bairro da zona norte no Rio de Janeiro, morreu queimado. Ali, nasceu nosso país como estado-nação. Ali, Dom Pedro II nasceu. Ali, sua mãe, a imperatriz Leopoldina, morreu. Ali, o imperador Pedro I abdicou do trono. Ali, meu pai me levou e contou a história do nosso país. Falou-me da importância da memória, da história de um país: o nosso.
Estive naquele museu muitas e muitas vezes. Ver as múmias, o fóssil da coruja gigante, os jardins. Ouvia atenta as explicações de meus pais e depois rolava na grama. Enquanto rolava, ficava de olhos abertos para poder ver o prédio imponente do museu. Imaginava dona Leopoldina, Dom Pedro, vivendo ali.
Depois cresci e convivi com amigos que ali trabalharam, com amigos que ali estudaram e mantêm uma relação profunda e amorosa com o Museu Nacional: a mais antiga instituição científica do Brasil, vinculada à UFRJ.
Há uma semana procuram-se culpados. Autoridades acusam-se mutuamente e o que mais me machuca é que o museu morreu queimado no mesmo ano em que se comemora seu aniversário de 200 anos. O que me deixa igualmente machucada e também estarrecida é que nenhuma autoridade (autoridades daquelas ditas importantes) compareceu à pequena festa realizada, em junho, para registrar a data. Embora tivessem sido convidadas.
Como muitos de nós, ao ver o museu arder, chorei como se tivesse perdido um ente querido e, na empurroterapia da culpa, prefiro ficar com os que fizeram a festa para o museu. Com os que entraram no museu em chamas, arriscando a própria vida, para tentar salvar algumas de suas mais de 20 milhões de peças. Com os que estão envolvidos no levantamento de peças que possam ter resistido ao fogo e jazem sob escombros. Eles nos deram lições de resistência, de amor ao que fazem, de amor ao museu. Não esmoreceram.
Mobilização para recuperar a história
Já na semana passada, houve uma defesa de tese na parte externa do museu, um ex-funcionário aposentado foi até lá especialmente para guiar a Polícia Federal em sua perícia nas instalações, em razão de conhecer o museu palmo a palmo. Alunos, ex-alunos, funcionários, gentes de todo o tipo e de todo lugar foram até o museu oferecer ajuda, abraçar o museu. Houve quem depositasse flores na estátua de Pedro II.
Moradores das imediações recolheram e seguem a recolher fragmentos levados pelo vento, praticamente cinzas do rescaldo, e vão até o Museu Nacional entregar o que acharam. Fez-se uma romaria de solidariedade. Nas redes sociais, divulgavam-se endereços eletrônicos para quem quisesse ajudar, como voluntário (https://m.facebook.com/story.
No entanto, o Museu Nacional como o conhecemos deixou de existir. Deixamos sob cinzas nossa memória. Registrar no tempo, guardar nosso passado é criar memórias da história humana, é tornar possível que cada geração se aproprie da bagagem cultural produzida ao longo de todo o desenvolvimento de nossa espécie.
Museus possibilitam que se revisitem fatos e idéias, que se reflita sobre cada um destes fatos e idéias. Museus misturam e acumulam memórias: a individual, que está nas histórias de vida, que servem à nossa interação social, memória individual que é, simultaneamente, memória coletiva (ou memórias coletivas, vindas das lembranças compartilhadas entre grupos sociais convivendo no mesmo espaço).
São ambas também a memória nacional, caldo de cultura e de identidade. Estas memórias todas convivem entre si, construções sociais que são (isto é, de todos), que se reforçam e fortalecem destas identidades individuais e coletivas. É de tudo isso se constrói, ergue-se e sobrevive um museu.
Deusa da memória
Para os gregos, a memória era um dom sobrenatural, vinha dos deuses. Era Mnemosine a deusa da memória, filha de Urano (céu) e Gaia (Terra). Mnemosine era a mãe das Musas, entidades que permitiam aos poetas lembrar o passado. Alegro-me, então. Porque presenciei em muitos destes poetas da esperança (vou chamá-los assim) o afinco e o cuidado em reerguer a memória do museu, em fazer renascer fragmentos, de cinzas, dando-nos belos exemplos de que é possível — de imediato — reconstruir simbolicamente dentro de cada um de nós um museu: o monumento Museu Nacional.
E vejamos que linda que é a etimologia da palavra: monumento vem do latim monumentum e nos remete à raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens) e da memória (menini). Vem também do verbo monere, cujo significado é fazer recordar, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo à suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar recordar.
É do historiador Jack Le Goff, de seu livro ‘História e Memória’, que transcrevo estas definições. Ora, se monumentos, como afirma Le Goff, destinam-se a fornecer lembranças à nossa memória para serem guardados nesta mesma memória, eles têm como característica o poder de se perpetuar em nós.
Com isso, o Museu Nacional poderá virar uma fênix. Jamais poderá voltar a ser o que um dia foi. Mas poderá se mostrar mais forte, firme e pujante em nossa memória e também fora dela: reconstruído, resguardado e preservado por todos e cada um de nós. Um símbolo de nossa resistência em favor da cultura e pela cultura.