Arlindo trabalha em esculturas de madeira que coleta nas ruas, mas também em outras formas de arte. Ele vive há 55 anos na antiga Colônia Juliano Moreira, hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, onde dividiu a cela com Artur Bispo do Rosário, que se celebrizou pela sua obra produzida por trás das grades. O artista plástico, paciente da instituição, teve sua genialidade reconhecida internacionalmente anos depois de sua morte, em 1989.

O lugar, que já foi considerado um “depósito de gente” na década de 70, hoje inspira arte e o sonho da liberdade. “Não largo o serviço enquanto não acabar. Vim pra cá adolescente. As crianças ficam doidas quando veem. Quando vou à exposição, adoro. Distrai a mente da pessoa”, diz Arlindo, ao relatar sua alegria em se dedicar à arte que aprendeu no Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea. O trabalho de Arlindo é um dos muitos apresentados na mostra “Arte Ponto Vital”, neste mês que marca o Dia da Luta Antimanicomial (18/5), dando visibilidade à busca pela humanização do tratamento ofertado aos usuários da rede de saúde mental.

Nos últimos 26 anos, o município libertou dos manicômios mais de quatro mil pessoas, que tiveram a cidadania resgatada voltando a viver com suas famílias ou em uma das 92 residências terapêuticas mantidas pela prefeitura. Em 1995, eram 4.500 pacientes internados em instituições do município como os institutos Juliano Moreira, em Jacarepaguá, e Nise da Silveira, no Engenho de Dentro. Hoje, há 504 moradores em residências terapêuticas cariocas, projeto iniciado entre 1998 e 2000.

A rede de saúde mental do município conta com aproximadamente 19 mil usuários nos 35 centros de atenção psicossocial (CAPS) da cidade. Pacientes libertados dos institutos psiquiátricos seguem seus tratamentos nesses CAPs, que substituem as grades por terapias baseadas muitas vezes em arte, mas sempre com respeito e empatia. Há ainda 127 pacientes internados em longa permanência em hospitais psiquiátricos municipais, que recebem projetos terapêuticos individuais, visando, assim que possível, a desospitalização.

Dos 127 pacientes ainda institucionalizados, muitos estão em vias de retornar à vida em comunidade, o que se tornou ainda mais viável a partir de 2002, com a aprovação do Bolsa Rio, apoio financeiro para pessoas que viveram em instituições psiquiátricas de longa permanência. Hoje, 363 são beneficiadas pelo auxílio.

Mostra revela história da Colônia Juliano Moreira

A mostra ‘Arte Ponto Vital’ começa com o início da história da Colônia Juliano Moreira, em 1924, quando o local era ambiente de trabalho dos pacientes, em sua maioria pessoas negras e vulneráveis ao adoecimento e à inadequação social. Eram pacientes crônicos, com pouca possibilidade de sair do tratamento imposto. A proposta de tratamento revolucionário rapidamente se tornou um “depósito de gente”, como alguns relatam.

No final dos anos 40, os ateliês começam a ganhar espaço na saúde mental, com médicos estimulando os poucos pacientes que demonstravam habilidade para pintura. Nos anos 80, artistas começaram a compartilhar suas experiências e desenvolver trabalhos artísticos com pacientes. Em 18 de maio de 1980, uma reportagem denuncia na TV a realidade caótica de exclusão e isolamento na colônia. Pela primeira vez, Arthur Bispo do Rosário é personagem na mídia.

Em 1982, acontece no Museu de Arte Moderna a primeira e única mostra autorizada por Bispo do Rosário, que não permite mais a exibição de suas peças, com quem tinha uma conexão profunda. Só em 1989, com a sua morte, reinicia-se a exposição de suas obras. Na década de 90, as internações param de ser realizadas na instituição, mantendo somente os pacientes já hospitalizados nela.

Onde já estiveram 5 mil pessoas internadas ao mesmo tempo, no final dos anos 70, hoje há pouco mais que uma centena. Foi desenvolvida a residência artística, em que artistas contemporâneos produzem junto aos pacientes, como Fernanda Magalhães, que trabalhou junto de mulheres internadas questões relacionadas à autoestima, por exemplo.

Entre as produções artísticas, esculturas, fotografias, vídeos, pinturas e até um espetáculo teatral de dança e música clássica. O museu tem ainda restaurante e loja, que comercializam produções dos artistas locais. E há também o Polo Experimental, em que são oferecidas oficinas de bordado, costura, horta, projetos de moda, rádio e até um bloco de Carnaval.

Pacientes expõem e vendem suas obras de arte

Artistas descobertos no ateliê da colônia fecharam parcerias com marcas, que vão usar suas artes em estampas, por exemplo. São desenvolvidos projetos de geração de renda, criando redes de contatos que permitem que cada um possa se reinserir na sociedade de alguma forma.

Por seis meses, Rogéria Barbosa vinha de Sepetiba para participar das oficinas, antes de se mudar para um bairro mais próximo da colônia. Ela, que já tinha uma trajetória artística, descobriu a oportunidade pela internet, em uma live do museu. Foi uma das artistas que participou da curadoria da mostra e terá uma de suas artes estampadas por confecção.

Arte é equilíbrio. Eu me equilibro através da minha arte, das minhas telas. É um encontro com nós mesmos. Eu me transformo. Conto minha história através da pintura. E estou escrevendo minha biografia”, relata a artista, que é exemplo do trabalho de descoberta de talentos atendidos nos CAPS.

Com o nome artístico Patrícia Ruth, a artista Ruth de Souza também teve sua obra exposta na Casa França-Brasil. “Eu fiquei toda importante, ficou muito bonito, e eu toda chique”, recorda, mostrando orgulhosa as imagens do dia em que foi à exposição na Casa.

Arte como caminho para a liberdade: a vida fora do hospício

Atualmente, há 504 moradores em residências terapêuticas da cidade (Marcelo Valle/Prefeitura do Rio)

Psiquiatra, psicanalista e cineasta, Raquel Fernandes é diretora desde 2013 do Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, em Jacarepaguá, na antiga Colônia Juliano Moreira, hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. Para ela, o dia 18 de maio reforça a necessidade de que a diferença possa coexistir.

A profissional aborda como a arte contribuiu e ainda contribui para a emancipação dos pacientes, muitos deles artistas que têm suas obras expostas na mostra “Arte Ponto Vital”. “A arte entra para furar a bolha de silenciamento. A exposição teve a curadoria de pacientes porque achamos importante que a história fosse contada por eles, através da perspectiva deles”, comenta. Segundo ela, o museu não é somente arte, mas também memória:

“É uma descoberta de novas possibilidades para o cuidado e de como a arte pode ser um elemento transformador. É preciso acreditar que essas pessoas têm direito a não morrer aqui. Queremos fazer um trabalho para que agora ocupem a cidade. A desinstitucionalização é um desafio, mas a partir da arte podem se encontrar e encontrar seu espaço na vida. Tentamos fazer com que cada um, dentro daquilo que consegue, faça parte do todo, o que gera autoestima”, declara.

O Mês da Luta Antimanicomial terá uma extensa programação (Foto: Marcelo Valle/Prefeitura do Rio)

Para a assessora chefe da Superintendência de Saúde Mental do município, a psicóloga Patrícia Matos, o Dia da Luta Antimanicomial é “uma data de celebração da possibilidade de vida fora do hospício para pessoas que foram privadas de liberdade por muitos anos, e finalmente saem dessas amarras”. Segundo ela, a reforma psiquiátrica está nas relações, no modo como praticamos o cuidado dentro e fora do hospício.

“Quanto mais tempo institucionalizadas, mais profundos os efeitos nas pessoas”, diz a especialista. Para ela, as experiências de forma geral são muito positivas e a humanização foi iniciada ainda dentro das instituições, com cuidados cotidianos dos pacientes:

Como muitos desses pacientes não têm família ou nenhuma possibilidade de retorno familiar, a residência terapêutica é um recurso para que eles saiam dos hospitais, vivendo em comunidade com suporte de profissionais. Trabalhamos prioritariamente pelo resgate dos laços familiares, para a construção da cidadania e o ganho da autonomia, mas fundamentalmente para a vida em liberdade, seja em residência terapêutica ou mesmo vivendo sozinhos.

AGENDA POSITIVA

Liberdade terapêutica em fotos

O Instituto Municipal Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, tem roteiro especial voltado para a celebração do mês da luta antimanicomial, começando nesta terça-feira (18), pelo lançamento da exposição “A liberdade é terapêutica” no Palácio Tiradentes, sede da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

São 16 imagens impressas em tecido de pessoas usuárias da rede de saúde mental do Rio e que foram produzidas pelos fotógrafos Marcelo Gonçalves Moura Valle e Pâmela Perez. De acordo com os organizadores, a exposição “retrata o cuidado em liberdade e a arte como bússola e leme para a construção de uma sociedade sem manicômios”.

Luto pela afirmação da Lei 10.216 da Reforma Psiquiátrica, que tem em sua história a quebra das grades dos manicômios, para o cuidado em liberdade e pela construção da inclusão social, garantindo os direitos aos usuários da saúde mental”, disse o deputado Flávio Serafini (PSOL), presidente da Frente Parlamentar.

Na mesma data, é lançado o ciclo de debates “Endereços na cidade: é o fim do manicômio”, na página do Facebook da instituição (imnisedasilveira). Já o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea realiza nesta terça, às 19h30, o lançamento do programa “Stella do Patrocínio: A História que Fala”. O programa foi idealizado por Diane Lima, que desenvolve pesquisa curatorial em torno dos áudios de Stella do Patrocínio, poeta que também foi institucionalizada.

O calendário segue até dia 29 de maio com exposições, aulas e rodas de conversa, entre outras atrações:

18/05 às 10h – Rádio Cafuné, programa com a participação do Loucura Suburbana – www.radiocafune.com.br

20/05 às 14h30 – Live “Arte contra o Manicômio” – Youtube Museu Bispo do Rosário

17h30 – Café com loucura – Facebook loucura.suburbana

21/05 às 14h – Trilhando na rede – encontro com o Centro de Convivência Trilhos do Engenho – Facebook trilhosodoengenho

22/05 às 19h30 – Entrenós – apresentação do Loucura Suburbana – Youtube EntreMundos de Teatro

24/05 às 19h – Aula musical  – Loucura Suburbana no curso Saúde Mental e Atenção Psicossocial – Unisuam

25/05 às 9h – Aula musical – Loucura Suburbana no curso Saúde Mental e Atenção Psicossocial  – Unisuam

26/05 às 15h – Ciclo de Debates Infância livre: o fim das internações infanto-juvenis no Engenho de Dentro – Facebook imnisedasilveira

19h – Roda de conversa – Participação do Loucura Suburbana no Ciclo Arte e Saúde Mental – Canal Cultura UFMG

27/05 às 19h – Live Encantarte – Lançamento do livro “Como aprendi a lidar com a depressão”, de Clayton de Souza – Facebook loucura.suburbana

28/05 às 14h – Exposição virtual Retratos de ConvivenciAR – Facebook imnisedasilveira

29/05 às 16h – Café com loucura – exibição do filme Bonecos do Germano de Victor Magrath – Facebook loucura.suburbana

Para visitar a exposição “Arte Ponto Vital”, do Museu Bispo do Rosário, é possível realizar agendamento ou fazer um tour virtual pelo site.

De Volta Para Casa’: Saúde reajusta em 21% auxílio para os beneficiários

O Ministério da Saúde anunciou nesta terça-feira (18) que aumentou em 21% o valor mensal repassado ao Programa de Volta Para Casa, voltado à assistência a pessoas com transtornos mentais no SUS. O valor mensal atual do auxílio voltado a essa população é fixado em R$ 412. Com o novo reajuste, o valor subirá para R$ 500.

O programa tem como objetivo reinserir na sociedade, pessoas com fragilidades socioeconômicas que passaram por longos períodos de internação em instituições psiquiátricas. O recurso viabiliza que essas pessoas resgatem adequadamente o convívio social, especialmente diante das dificuldades geradas pela pandemia da Covid-19. Grande parte dos beneficiários são moradores de uma das 797 Residências Terapêuticas existentes no País, um serviço oferecido pelo SUS que cresceu 37% desde 2017. 

Com o aumento nos recursos destinados a essas pessoas, o Ministério da Saúde reafirma o compromisso com a garantia do direito a uma saúde mental de qualidade, baseada em evidências e prestada em ambientes predominantemente ambulatoriais, de caráter regionalizado, com ênfase na inclusão e promoção da cidadania”, afirma a pasta.

A lista dos estabelecimentos que fornecem atendimento em saúde mental no Brasil pode ser conferida no mapa interativo elaborado pelo MS. A ferramenta pode ser consultada aqui.  

Da SMS, com Alerj e Agência Saúde

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