‘Terrivelmente’ disruptivo, impactante e muito, muito divertido. Assim é o espetáculo King Kong Fran, que nos convida a refletir – de forma irreverente e debochada – sobre temas tão antigos quanto atuais como machismo, assédio, abuso, consentimento, violência de gênero, patriarcado. E só quem passou na pele por tudo isso tem o direito de brincar. Misandria? Vingança? Reparação de danos? Ou simplesmente justiça?

A verdade é que King Kong Fran ultrapassa as fronteiras do simples entretenimento e dos clichês que envolvem a complexa relação heterossexual – homem cis x mulher cis. E explora, sem ser chato, questões que empurramos goela abaixo ou enfiamos para debaixo do tapete durante décadas, trazendo a todos, homens e mulheres, o dever de repensar a forma como a mulher ainda é tratada – ou aceita ser tratada – na atualidade.

O espetáculo já levou milhares de pessoas ao teatro e segue mobilizando uma legião de fãs numa “temporada estendida” na cidade do Rio de Janeiro.  Apresentada no Teatro Riachuelo no primeiro fim de semana de janeiro – fez tanto sucesso que o público pediu bis e a peça voltou, com reapresentações todas as quartas-feiras, às 20 horas, até dia 7 de fevereiro – neste dia 17, quase 1 mil pessoas foram ver.

A estrela de King Kong Fran é uma palhaça. Literalmente. A atriz Rafaela Azevedo, de 31 anos, carioca de Honório Gurgel, mesmo bairro do subúrbio carioca onde nasceu Anitta – usa as técnicas aprendidas no teatro e no circo para conceber a dramaturgia do espetáculo, que também dirige, junto com Pedro Brício. O final – não vamos dar spoiler – é de emudecer.

Para a jornalista Waleria de Carvalho, colunista de teatro do site Sopa Cultural, “King Kong Fran é daquelas peças que levamos na memória porque presta um serviço à sociedade ao abordar o tema machismo de uma forma divertida e informativa”.

“A sacada da atriz e palhaça Rafaela Azevedo em fazer uma analogia com a mulher Konga, que assustava os frequentadores de um parque, com o clássico filme King Kong é sensacional. Mostrar ao público o que muitos homens fazem com as mulheres de forma reversa talvez possa auxiliar na desconstrução do machismo”, afirma ela, que ficou chocada com a revelação no final.

“King Kong Fran denuncia a misoginia, o assédio e a violência, sobretudo nas relações íntimas, trocando os sinais: a vítima agora é o agressor”, diz a jornalista Roni Filgueiras, crítica de cinema e doutoranda do PPGCOM da Escola de Comunicação da UFRJ. “Rafaela Azevedo é uma força da natureza e mostra no palco a sua dramaturgia potente. Faz rir e pensar. Imperdível (veja mais no artigo abaixo).

Cultura pornificada: ‘eles são vítimas e atuam como algozes da mulher’

Por Roni Filgueiras*

Cultura pornificada é o tema explorado em “Pornolândia: Como a pornografia sequestrou a nossa sexualidade”, de Gail Dines (Beacon Press). A socióloga britânica refaz em 200 páginas o percurso de como a indústria pornográfica saiu do gueto para se alastrar na sociedade de maneira massiva.

Quando falo de “‘pornografia’, estou me referindo principalmente ao ‘gonzo’ — aquele gênero que está por toda a Internet e é hoje um dos maiores geradores de dinheiro para a indústria — que retrata sexo hardcore e fisicamente punitivo, no qual as mulheres são humilhadas e degradadas”.

Foi isso que me veio à cabeça ao assistir a “King Kong Fran”, o monólogo de Rafaela Azevedo, 31 anos, carioca do subúrbio de Honório Gurgel, que também nos deu Anitta. Mas quanta diferença…

Azevedo denuncia a misoginia, o assédio e a violência, sobretudo nas relações íntimas, trocando os sinais: a vítima agora é o agressor (de homens, claro). A cenografia vai do circo à estética boudoir.

Em entrevista, Azevedo exemplifica essa dinâmica de como a cultura pornificada se alastra no mundo da música. Mesmo que uma cantora tenha talento, é quase impossível ela ter sucesso se não o atrelar à imagem de um corpo fetichizado e disponível.

Aí, complementa que as coisas mudaram: são as cantoras que ganham o dinheiro que antes ia para machos brancos que exploravam a imagética da puta que hoje elas mesmas exploram sobre si mesmas…

Resumindo a dialética: a cantora seminua é a puta e ao mesmo tempo o cafetão de si e isso a liberta… Oi?! O neoliberalismo que disseminou a lógica empresarial dos sujeitos não perdoa nem a militância feminista que engole essas iscas do empreendedorismo.

Outra pílula do pensamento do dia: a cultura pornificada, um subproduto do neoliberalismo empreendedor, é uma bomba no colo também dos homens. É uma dupla função: eles são vítimas e atuam como algozes da mulher. Nesse jogo não há vencedores, fora o capital, a indústria de pornografia gonzo.

Rafaela Azevedo é uma força da natureza e mostra no palco a sua dramaturgia potente. Faz rir e pensar. Imperdível.

Roni Filgueiras é jornalista, crítica de cinema e doutoranda do programa de pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.

Saiba mais sobre o espetáculo

   

Num misto de cabaré com circo e show de mulher-gorila, Fran diverte o público virando ao avesso os estereótipos do feminino: com humor e ironia, inverte a lógica machista e brinca com a plateia fazendo com que os homens ‘provem do seu próprio veneno’.

Numa fusão das linguagens de circo e teatro, o solo King Kong Fran, protagonizado pela personagem-título Fran, criação da atriz e palhaça Rafaela Azevedo, convida o público a conhecer o avesso dos estereótipos do feminino disseminados na sociedade.

Partindo de referências como a atração circense Monga, A Mulher Gorila, e King Kong, o gorila gigante do cinema, Rafaela questiona a sexualidade e a distinção de gênero na construção social.

Entre brincadeiras (consentidas), relatos e músicas, a atriz interage com os espectadores propondo que experimentem inversões dos estereótipos de gênero. Fazendo o papel secularmente atribuído aos homens, Fran os aborda fazendo convites e propostas.

A plateia reage bem, e embarca na brincadeira. A direção musical, pop e bem-humorada, é da cantora e compositora Letrux.

Peça evidencia a objetificação da mulher

Para o coautor e codiretor de King Kong Fran, Pedro Brício, ao falar da história do King Kong e da história da mulher-gorila, a peça evidencia a objetificação da mulher, tanto no circo quanto na vida cotidiana.

“As interações com a plateia são reveladoras, além de muito engraçadas. Na comunicação com o público, sobretudo o feminino, a Rafa expõe de uma maneira muito crítica os papéis sociais do homem e da mulher. E como ela inverte jogo e faz também o papel dos homens, acho que tudo fica muito divertido para eles também.”

Pedro conta que o espetáculo une palhaçaria e performance, junto com o teatro. “Tem um lugar híbrido que eu adoro. A base do jogo do palhaço é com o público. Então, é um espetáculo de franca comunicação, muito engraçado e também provocador, de muita empatia. O sucesso dele vem daí”.

O diretor conheceu o trabalho da Rafa num outro espetáculo, em que ela dublava a música Toxic, da Britney Spears. “Terminou e eu falei, quero fazer um espetáculo com você. Fiz este projeto por ter visto uma artista extraordinária. Ela não é só uma comediante, ela é também palhaça”.

A palhaça Fran: saiba mais sobre Rafaela Azevedo

Idealizadora, intérprete, codiretora e codramaturga do espetáculo King Kong Fran, Rafaela Azevedo foi indicada ao Prêmio do Humor como Melhor Performance, Melhor Espetáculo e Melhor Direção. A artista também é idealizadora e intérprete do espetáculo de palhaçaria Fran World Tour – eu só preciso ser amada.

Estreou no Brasil em 2018 e em 2019 circulou em âmbito nacional e internacional – esteve na Itália e na Alemanha. Participou dos principais festivais de palhaçaria feminina do Brasil: Esse Monte de Mulher Palhaça em 2018, Encontro Internacional de Mulheres Palhaças de São Paulo em 2019. Integrou a programação do Festival Internacional de Mulheres nas Artes Cênicas / Rede Internacional de Mulheres – THE MAGDALENA PROJECT em 2015 e 2018.

Assina a direção, ao lado de Pedroca Monteiro, do espetáculo musical cômico Canções para Matrimônio, de Ingrid Gaigher e direção do show Kitch Completo, da artista Natascha Falcão. É idealizadora e diretora do Laboratório Estado de Palhaça e Palhaço, escola online que difunde a técnica da palhaçaria.

Formada pela Casa das Artes de Laranjeiras em 2011, Rafaela iniciou sua carreira em 2012 como integrante do Grupo Teatral Moitará, referência no Brasil sobre pesquisa de linguagem da máscara teatral. Participou do Polo Carioca de Circo, coordenado pelo Grupo Off-Sina, no estudo da palhaçaria sob a perspectiva de diferentes profissionais renomados na área, como Ricardo Puccetti, Lily Curcio, Ésio Magalhães.

Estudou e trabalhou com Enrico Bonavera (Piccolo Teatro de Milão, Itália) mestre e expoente da Commedia Dell’Arte; Donato Sartori e Paola Piizzi (Centro Máscara e Estrutura Gestual, Itália) referência na pesquisa e confecção da máscara teatral; Lina Della Rocca (Teatro Ridotto, Itália) atriz, diretora e pedagoga integrante do grupo internacional de pesquisa Ponte dos Ventos, dirigido por Iben Nagel Rasmussen, e que integra outro importante grupo de teatro, o Odin Teatret, de Eugenio Barba.

Sobre Pedro Brício – coautor e codiretor

Estudou Cinema na Universidade Federal Fluminense e fez Mestrado em Teatro na Uni-Rio. Cursou a Desmond Jones School of Mime (Londres), a Scuola Internazionalle Dell’atore Comico (Italia) e a École Philippe Gaulier (Londres). Escreveu e dirigiu as peças Sonhos de uma noite com o Galpão, O Condomínio, A outra cidade, Me salve, musical!, Trabalhos de amores quase perdidos, Cine-Teatro Limite, A incrível confeitaria do Sr. Pellica, entre outras. Recebeu alguns dos principais prêmios do país pelo seu trabalho, como Shell, Questão de Crítica, Contigo e APCA.

Tem textos traduzidos para o inglês, espanhol e alemão. Participou da Feira Internacional do Livro de Frankfurt, da Semana de Dramaturgia Contemporânea, em Guadalajara, e da mostra Una Mirada al Mundo, no Centro Dramatico Nacional, em Madri. Como diretor, encenou textos de Samuel Beckett, Edward Albee, Rafael Spregelburd, Patricia Melo e Hilda Hilst. Recentemente escreveu e dirigiu os espetáculos King Kong Fran (em parceria com Rafaela Azevedo) e o musical Ícaro and the black stars.

Serviço:

Espetáculo KING KONG FRAN

Duração: 70 minutos.

Classificação indicativa: 18 anos

Teatro Riachuelo

Dias 5, 6 e 7 de janeiro de 2024 – sexta e sábado às 20h e domingo às 18h.

Teatro Riachuelo RJ – Rua do Passeio, 40 – Rio de Janeiro.

Ingressos: R$ 19,50 a R$ 100.

Link vendas: https://bit.ly/3QslB3r

Capacidade: 999 lugares.

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