Para muitos, IA é a sigla de Inteligência Artificial. Mas no vasto mundo das doenças raras, significa insuficiência adrenal, uma condição que pode levar à morte se não for tratada a tempo nas emergências. Essa doença rara, causada pela deficiência do hormônio cortisol, atinge mais de 80 mil brasileiros, sendo cerca de 17 mil somente no Estado do Rio de Janeiro.

O controle dos pacientes em casa deve ser feito com uso diário de hidrocortisona oral. Mas essa medicação, que custa somente 38 centavos cada comprimido, ainda precisa vir de São Paulo e o frete chega a custar de R$ 150 a R$ 300. Não é só isso: faltam um protocolo para atendimento; kits de emergência com a hidrocortisona venosa nas emergências públicas aos pacientes em crise adrenal e, sobretudo, mais pesquisas e conhecimento sobre o assunto, inclusive entre os médicos.

“Trinta e oito centavos é o preço de uma vida? A falta de medicamento é uma sentença de morte para o paciente. A hidrocortisona oral é o ‘padrão ouro’ de tratamento da insuficiência adrenal”, afirma a psicóloga Adriana Santiago, mãe de Letícia, uma jovem estudante de Medicina de 21 anos com doença de Addison, também conhecida como insuficiência adrenal primária.

Adriana é vice-presidente da Associação Brasileira Addisoniana (ABA), que reúne pacientes e familiares dos diferentes tipos de IA e apresentou uma série de demandas para melhor acolhimento dessas pessoas no Estado do Rio junto à  Frente Parlamentar das Doenças Raras da Alerj.

promoveu nesta quinta-feira (25) uma roda de conversa sobre insuficiência adrenal, em parceria com a Associação Brasileira Addisoniana (ABA). Realizado no mini-auditório da Escola do Legislativo do Estado do Rio de Janeiro (Elerj), o evento marcou o mês de conscientização sobre a doença, por conta do dia nacional, celebrado em 23 de abril.

Deputado Munir Neto, coordenador da Frente das Doenças Raras da Alerj, abriu o evento (Fotos: Divulgação)

Adriana defendeu a produção local de hidrocortisona oral no Rio de Janeiro. Hoje, a medicação é produzida apenas no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), que não tem capacidade para atender todo o  país.

“O único estado da federação que oferta a medicação aos seus pacientes é Santa Catarina, que importa a cortisona de diversos países. Então, a gente quer trazer isso para que o Rio de Janeiro também seja protagonista dessa história”, disse.

O deputado estadual Munir Neto (PSD), coordenador da Frente, prometeu empenho para solucionar esta e outras demandas dessas famílias que convivem com a insuficiência adrenal. “Vamos fazer uma força-tarefa para que o estado adquira essas medicações – que são baratas, mas ainda não têm no Rio de Janeiro – para fornecer às pessoas que tanto precisam”, disse o parlamentar.

Ele lembrou que o novo Estatuto da Pessoa com Doença Crônica, Complexa e Rara, projeto de sua autoria que virou lei recentemente, assegura diversos direitos a esses pacientes, entre os quais, o acesso ao diagnóstico e tratamento. Com a entrada em vigor, o Estado do Rio se tornou o primeiro do país a garantir uma legislação específica para oferecer melhor qualidade de vida a estes pacientes.

Rio de Janeiro foi o primeiro estado a criar um estatuto para pessoas com doenças raras (Foto: Divulgação Alerj)

Capacitação de médicos e protocolo de atendimento

Além da produção local de hidrocortisona no Rio de Janeiro ou mesmo da importação dessa medicação, a ABA defende outras demandas urgentes dos pacientes, como a capacitação de médicos sobre essa doença rara e a criação de um protocolo de atendimento nas emergências durante a crise adrenal aguda, que é potencialmente fatal. 

Hoje, a entidade fornece um cartão de identificação onde consta o protocolo médico, usado internacionalmente, que precisa ser seguido na emergência em caso de atendimento a um paciente em crise adrenal. “A pessoa precisa entrar imediatamente com o soro e a hidrocortisona venosa. Isso salva vidas”, explicou Adriana.

Segundo ela, o kit de emergência (contendo a injeção de hidrocortisona venosa e insumos para aplicação) deveria ser fornecido pelo SUS nas unidades de saúde, mas hoje só é fornecido pela ABA, com autorização médica – saiba como é feito esse processo aqui.

Adriana Santiago, vice-presidente da ABA, contou sua vivência com a filha que tem a doença de Addison (Foto: Marco Antônio Rezende)

Os pacientes de IA também enfrentam dificuldades de acesso a outra medicação, a fludrocortisona. “O fornecimento pela Rio Farmes tem melhorado, mas ainda há muita dificuldade”, disse Adriana.

Mães relatam sua luta pelos direitos das filhas a tratamento

Adriana também contou sua ‘saga’ iniciada quando a filha tinha apenas 5 anos. Depois de passar por mais de 20 médicos, foi a partir de uma crise adrenal de Letícia que a família conseguiu chegar ao diagnóstico e ao tratamento.

“Minha filha começou a apresentar sintomas aos 5 anos e chegou a pesar 10 quilos com 7. Mas só aos 8 o diagnóstico foi fechado em São Paulo”, contou. Aí começou a luta pela medicação. Letícia precisa tomar em média cinco comprimidos de hidrocortisona por dia para não entrar em crise.

Kênia e a filha Maria Alice: luta para ter acesso a atendimento e cirurgia pelo SUS (Foto: Rosayne Macedo)

Drama semelhante é enfrentado por Kênia de Paula Marriel de Souza, mãe de Maria Alice, de 6 anos, que tem hiperplasia adrenal congênita (HAC), um tipo de IA que está entre as seis doenças detectadas logo no nascimento do bebê, por meio do Teste do Pezinho tradicional.

Com menos de três meses de vida, ela teve a primeira crise e precisou ainda esperar cinco anos até a cirurgia, realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), em julho de 2023.  

“Não desejo o que passei a ninguém, tive que enfrentar olhares tortos e muita falta de empatia no serviço público em muitas situações. Alguns médicos se recusavam a acreditar no próprio laudo médico do especialista”, disse Kênia.

A ABA estima que 67% das 17.200 que possuem algum tipo de Insuficiência Adrenal (IA) sejam menores de 18 anos e precisam da hidrocortisona para seu desenvolvimento físico e intelectual adequado. Das 12 mil crianças que nascem no Estado do Rio todos os anos, pelo menos 12 são diagnosticadas logo ao nascer com a HAC e usarão essa medicação pelo resto da vida. É o caso de Maria Alice. Assim como Letícia, a menina também precisa da hidrocortisona oral diariamente.  

Câncer de adrenal: os desafios de um tumor ultra raro

A ‘impaciente’ Cheryl Berno, de 53 anos, contou sua saga no enfrentamento do câncer de adrenal (Foto: Divulgação Alerj)

Em depoimento emocionado, a advogada carioca Cheryl Berno contou como enfrentou o câncer de adrenal, uma doença ultra rara, extremamente agressiva, descoberta durante a pandemia de covid-19, quando ela estava perto de completar 50 anos. ‘Impaciente’, como se autodescreve, a advogada precisou buscar informações e ajuda médica nos Estados Unidos e na Europa devido à falta de conhecimento sobre e enfermidade entre os médicos no Brasil. 

“É preciso informação para o paciente e para os próprios médicos, que, por muitas vezes, não conhecem a doença. Nem o site do Inca (Instituto Nacional do Câncer) tem informações sobre o câncer de adrenal assim como outros tipos de câncer raros”, contou.

Outra dificuldade foi na confirmação do diagnóstico por falta de conhecimento dos patologista em São Paulo, o exame teve que ser enviado para dois laboratórios nos EUA. Segundo ela, o exame de mitotonia, que detecta o tumor, não é feito no Rio, apenas em Curitiba e agora, mais recentemente, também em São Paulo. 

Cheryl teve Covid-19 e foi diagnosticada com hepatite B, o que impossibilitou a quimioterapia tradicional. No seu caso, além da hidrocortisona para tratar a insuficiência adrenal que ela desenvolveu, era indicado um quimioterápico oral de alto custo: Mitotano, de nome comercial Lisodren, que não tem fabricação no Brasil.  

Mesmo com um bom plano de saúde, Cheryl teve dificuldades de acesso ao medicamento, que é importado da França e custa R$ 1,7 mil cada caixa – ela precisava de cinco por mês para destruir as células cancerígenas nas glândulas suprarrenais. “O medicamento é feito à base de um agrotóxico antigo, que combate as células de adrenal, levando cachorros à morte”, contou.

Na sua ‘odisseia’ pela cura da doença, Cheryl acabou conseguindo o tratamento pelo Sistema Único de Saúde ao conhecer a médica especialista Maria Cândida Barisson Vilares Fragoso, que a inseriu em uma pesquisa clínica no HC-FMUSP. Hoje, ela é só gratidão ao SUS, “o melhor plano de saúde do Brasil”. Se estou viva hoje para contar essa história eu tenho que agradecer ao SUS”, disse.

Dificuldades no diagnóstico da insuficiência adrenal

O acesso ao diagnóstico é outra dificuldade enfrentada na jornada do paciente com insuficiência adrenal. No caso do câncer de adrenal, segundo Cheryl, somente em São Paulo é possível fazer o exame de mitotonia para o diagnóstico definitivo.

Roda de conversa no miniauditório da Escola do Legislativo (Elerj) reuniu pacientes, familiares e especialistas (Foto: Divulgação Alerj)

A médica Aline Moraes, doutora em Endocrinologia e professora adjunta do Departamento de Medicina Clínica da Universidade Federal Fluminense (UFF), falou das dificuldades de acesso ao diagnóstico da insuficiência adrenal. Segundo ela, alguns pacientes que chegam nas emergências não têm o devido diagnóstico, enquanto outros, que já têm as IAs pré-detectadas, não conseguem ter o tratamento adequado.

“Insuficiência adrenal é uma doença rara. No entanto, quando a gente pega o contingente populacional, ela pode atingir 280 casos por 1 milhão de habitantes. O não reconhecimento da doença no momento adequado pode gerar problemas ao paciente. Os sinais e sintomas são bem inespecíficos. É muito importante políticas onde a gente possa fazer a educação do profissional e do paciente”, alertou a especialista.

De acordo com a Dra Aline, a dosagem de cortisol basal – o exame mais comum – nem sempre é segura para todos os pacientes, já que eles precisam ser induzidos a uma taxa de glicemia de 45 mg/dl, o que pode provocar sérias complicações. A melhor solução para confirmar o diagnóstico em diferentes casos de IA é por meio de um teste com cortrosina, uma medicação importada que custa em torno de R$ 8 mil.

“Hoje, o teste de tolerância insulínica, que mede o cortisol basal, é um teste temeroso, tem que ter supervisão médica, é difícil ter essa segurança. O padrão ouro nesse caso é com uso do ACPH sintético, que é a cortrosina. Esse medicamento tem dois nomes comerciais e ainda não aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Hoje, quem precisa acaba tendo que importar”, defendeu. 

A médica endocrinologista Aline Moraes, da UFF, relata dificuldade para diagnóstico de insuficiência adrenal (Foto: Marco Antônio Rezende)

Segundo Aline Moraes, na pesquisa com 350 pacientes com suspeita de insuficiência adrenal, 25% dos que foram submetidos ao teste com cortrosina deram resultado positivo. O estudo é conduzido pelo também endocrinologista Leonardo Vieira Neto, professor adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e médico do Serviço de Endocrinologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (UCFF/UFRJ), na Ilha do Fundão.

A advogada Nathalia Cavalcanti, especialista em Direito da Saúde, contou sua experiência desde a pandemia de Covid-19 no atendimento a pacientes que necessitam de acesso a medicamentos pelo SUS e também pelos planos de saúde. Segundo ela, muitas vezes as famílias são obrigadas a judicializar para fazer valer seus direitos garantidos. Ela lançou um podcast sobre Direito da Saúde, o “Além do Crônico”, onde traz relatos de pacientes com doenças e sua luta para conseguir tratamento. 

‘Minha doença não é rara, é subdiagnosticada’

Ainda durante o evento, o servidor da Alerj Lauro Botto, de 44 anos, que colaborou na criação da Frente Parlamentar das Doenças Raras, contou que descobriu a doença de Addison há cinco anos, graças à dosagem de cortisol basal, após uma bateria de exames de imagem complexos.

“Foi só depois desse exame simples, que não chega a custar R$ 200, que descobri o que eu tinha e que poderia me levar à morte”, disse ele, que sofria desmaios e quedas constantes. “Eu quase morri muitas vezes. Corria risco de infarto, mal súbito ou queda da própria altura. A hidrocortisona mudou a minha vida”, contou.

Para Lauro, muitos pacientes morrem sem saber que têm Addison. “Essa doença não é rara, é subdiagnosticada. E vai deixar de ser considerada rara se as pessoas tiverem acesso a esse exame”. 

O deputado Munir Neto, o gestor público Rafael Thompson e a psicóloga Adriana Santiago (Foto: Marco Antônio Rezende)

Também presente à roda de conversa, o gestor público Rafael Thompson destacou seu apoio ao trabalho da Frente dos Raros desde a sua criação, após uma solicitação da ABA, e a importância do recém-lançado Estatuto.

Ex-presidente da Associação dos Funcionários do Iaserj, a assistente social Marilea Ormond contou sobre sua experiência de 57 anos na saúde pública e falou das inúmeras dificuldades dos pacientes diante do sucateamento das unidades de atendimento.

O que é insuficiência adrenal?

Segundo a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), a insuficiência adrenal (ou insuficiência suprarrenal) é uma condição clínica resultante da produção deficiente do hormônio cortisol pelo córtex das adrenais (ou suprarrenais), glândulas que medem cerca de 5 centímetros, localizadas logo acima dos rins.

O cortisol desempenha várias funções importantes no organismo, interferindo no metabolismo, na pressão arterial e em processos inflamatórios. Também chamado de “hormônio do estresse”, é ele quem controla a vida, já que tem papel fundamental na regulação da pressão arterial e do açúcar no sangue.

A insuficiência adrenal atinge tanto crianças quanto adultos, causando danos às glândulas suprarrenais, hipófise e hipotálamo – essas duas últimas, localizadas na base do cérebro. Em situações normais, a hipófise produz o hormônio ACTH, que estimula as glândulas adrenais a produzir cortisol. Quando as concentrações de corticoide no sangue estão elevadas ocorre a inibição da produção de ACTH pela hipófise, que deixa de estimular as adrenais.

Em suas diferentes formas, a doença pode ser causada por distúrbios nessas glândulas, reação autoimune, tumores, infecção por fungos, doenças congênitas ou mesmo por uso indiscriminado de corticoides como prednisona.

Tipos de insuficiência adrenal

Os especialistas divergem em relação à classificação dos tipos de insuficiência adrenal, mas, de acordo com uma portaria de 2020 do Ministério da Saúde, a IA pode ser classificada em primária, secundária e terciária.

primária, conhecida como doença de Addison, quando o defeito na produção de cortisol está na própria glândula adrenal;

secundária, a mais comum, quando a disfunção está na glândula hipófise, e

terciária, quando o defeito está localizado no hipotálamo.

De acordo com a professora de Endocrinologia da UFF, Aline Moraes, tanto a secundária quanto a terciária são atualmente chamadas de ‘central’, tendo maior prevalência daquelas causadas por disfunções na hipófise.

Outras doenças classificadas como IA são hiperplasia adrenal congênita, a forma genética da doença, que é detectada pelo Teste do Pezinho, e o câncer de adrenal, tumor maligno que tem origem no córtex desta glândula.

Sintomas da doença rara

Entre os sintomas mais comuns dos diferentes tipos de insuficiência adrenal estão:

  • fadiga;
  • falta de apetite;
  • perda de peso;
  • náusea e vômitos;
  • dores abdominais;
  • tontura e fraqueza muscular;
  • escurecimento da pele (gengivas, articulações e linhas das mãos);
  • queda de cabelo e pêlos do corpo;
  • queda na pressão arterial;
  • diminuição da taxa de glicose no sangue (hipoglicemia);
  • fissura por sal e
  • baixa na libido. 

Crise adrenal, o que fazer?

A crise adrenal aguda ou crise addisoniana pode causar insuficiência renal e levar o paciente ao choque ou mesmo à morte, se não for imediatamente tratada. O tratamento em geral nas emergências deve ser feito à base de corticosteroides e hidratação intravenosa.

Para o dia a dia do paciente, a doença pode ser controlada com uso de hidrocortisona em comprimidos para substituir o cortisol, evitando assim uma crise adrenal. No entanto, infelizmente, muitos pacientes ainda enfrentam dificuldades de acesso ao tratamento adequado pela dificuldade de obter a medicação.

“A maior causa da mortalidade da Insuficiência Adrenal infelizmente está na má conduta na hora da crise adrenal  por falta de informações  dos médicos”, afirma a vice-presidente da ABA.

Dia Mundial da Insuficiência Adrenal

O Dia Internacional da Insuficiência Adrenal (23 de abril) foi criado em homenagem ao aniversário de Thomas Addison, médico e pesquisador britânico que foi o primeiro a descrever a doença em 1855. Naquela época, não havia tratamento e os pacientes acabavam morrendo precocemente.

O Congresso Nacional recebeu iluminação azul nesta terça e quarta-feira (dias 23 e 24 de abril) a fim de conscientizar a população sobre a insuficiência adrenal.

 

Gostou desse conteúdo? Compartilhe em suas redes!
Shares:

Related Posts

1 Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *