Responsável pelo atendimento de milhares de mulheres e mães em situação de vulnerabilidade na Baixada Fluminense, o Hospital Estadual da Mulher Heloneida Studart, no município de São João de Meriti, vem sendo alvo de denúncias que colocam em xeque a segurança das pacientes.

Entre os casos alarmantes ocorridos no hospital estão o da trancista Alessandra dos Santos Silva, de 35 anos. Também passista da escola de samba Grande Rio, ela sofreu amputação parcial do braço esquerdo em fevereiro deste ano, após submeter-se a um procedimento cirúrgico para retirada de miomas uterinos naquela unidade.

Em julho de 2022, o hospital esteve no centro de outro escândalo nacional repugnante: o caso do médico anestesista que estuprou uma paciente durante um parto. Giovanni Quintella Bezerra, de 32 anos, foi preso em flagrante e denunciado pelo Ministério Público por estupro de vulnerável. Ele também teve seu registro cassado pelo Conselho Regional de Medicina (Cremerj).

Nesta terça-feira (16/5), representantes da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), estiveram no local para uma fiscalização, após denúncias recebidas durante uma audiência pública realizada em abril sobre violência obstétrica.

 

“Nós recebemos algumas denúncias, viemos ver de perto qual é a situação do hospital. Foi aberta uma sindicância para apurar o caso de Alessandra e nós vamos acompanhar esse processo”, comentou a deputada Renata Souza (Psol), que preside a Comissão da Alerj.

Alessandra dos Santos Silva (Foto: Reprodução/TV Globo)

De acordo com o diretor geral do hospital, Abrahão Viana, a cirurgia de retirada do mioma tinha o risco de ser seguida por uma histerectomia – a remoção cirúrgica do útero, que também pode incluir a retirada das trompas adjacentes e do ovário. O procedimento ocasionou uma alteração na coagulação sanguínea.

“Todo o passo a passo foi informado à paciente. O quadro dela ficou muito grave. Em menos de 24 horas, ela foi transferida para unidade referência em vascular (o Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro – Iecac, em Botafogo) logo que apresentou um quadro estável”, disse ele.

Em depoimento a policiais que investigam o caso no final de abril, Gustavo Machado, o médico responsável pela primeira cirurgia, negou ter havido negligência em seu atendimento, mas Alessandra acredita que foi vítima de erro médico.

“Se eu tive o braço amputado foi para salvar a minha vida do estado que eu cheguei lá. Se eu tivesse chegado em bom estado, não teriam que ter feito isso”, disse ela à TV Globo. “Acabaram com a minha autoestima, acabaram com meu psicológico, acabaram com meu noivado. Me destruíram. É muito doloroso. Eles destruíram minha profissão: cabeleireira, trancista, implantista. Como que eu trabalho agora? Vou sobreviver de que?”, questionou.

Coren-RJ descarta imperícia, negligência ou imprudência da equipe de enfermagem

Alessandra, ao lado da mãe, denuncia negligência e erro médico no Hospital da Mulher (Reprodução TV Globo)

No final de abril, o Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro (Coren-RJ) esteve no Hospital Estadual Heloneida Studart para fazer uma análise preliminar do prontuário médico de Alessandra. E recebeu da gestão a informação de que uma sindicância estava em curso para apuração minuciosa do caso. A entidade descartou qualquer irregularidade cometida por profissionais da Enfermagem.

“Nesse ato fiscalizatório não foram identificados fatos que configurem imperícia, negligência ou imprudência da equipe de enfermagem. No entanto, o Coren-RJ seguirá acompanhando os desdobramentos da sindicância, até que sejam esclarecidas as causas que levaram à histerectomia total e à amputação”, informou.

Fachada do Hospital Estadual da Mulher, em São João de Meriti (Foto: Thiago Lontra / Alerj)

Ainda segundo a entidade, as duas enfermeiras que estiveram na diligência puderam “dialogar com gestores no hospital e examinar com liberdade o prontuário completo da paciente”. Também procederam à “análise minuciosa das evoluções multiprofissionais anotadas no referido documento em todos os cenários, nos quais a paciente foi atendida, constatando a existência de evoluções clínicas durante todo período de internação, assim como os registros de todas as intercorrências e condutas adotadas”.

Em nota divulgada no final de abril, a Fundação Saúde, que gerencia o Hospital da Mulher Heloneida Studart, explicou que a paciente teve uma evolução clínica desfavorável, em que foi preciso aplicar medicação para conter uma hemorragia, mas que pode ter gerado a complicação no braço, levando à amputação.

“A Fundação esclarece que, apesar de todo empenho da equipe, lamentavelmente, a evolução clínica da paciente foi desfavorável. No pós-operatório, foi identificada uma hemorragia interna. Para salvar a vida da paciente, foi necessária a retirada do útero, transfusão sanguínea e administração de doses elevadas de aminas vasoativas, que provocam o estreitamento dos vasos sanguíneos para manter a pressão arterial, mas que podem causar uma oclusão arterial como efeito adverso. Levantamento preliminar do caso aponta que foi isso que aconteceu no braço da paciente”, diz o comunicado.

Médico anestesista estuprava pacientes em sala de parto

Réu por estupro de vulnerável, o ex-médico Giovanni Quintella Bezerra  está preso na Cadeia Pública Pedrolino Werling de Oliveira, também conhecida como Bangu 8, no Complexo de Gericinó, na Zona Oeste do Rio. Ele não era servidor do estado, mas com título de especialista em anestesiologia, CRM regular, ele prestava serviço como pessoa jurídica para os hospitais estaduais da Mãe, da Mulher e Getúlio Vargas.

O crime foi filmado por profissionais de Enfermagem que atuavam na sala de cirurgia.  No registro, a paciente estava deitada na maca, inconsciente, e, enquanto a equipe médica finalizava o procedimento cirúrgico, Giovanni foi flagrado introduzindo o pênis na boca da vítima. Ao terminar de praticar o crime, usou um lençol para limpar a boca da paciente. Conforme relatos, a ação durou cerca de 10 minutos e o vídeo, que serviu como prova, foi encaminhado à Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de São João de Meriti.

Sobre o caso do anestesista acusado de violentar pacientes na sala de cirurgia, o hospital informou à Comissão da Alerj que “prontamente substituiu o profissional para continuar os procedimentos de anestesia e prestou total auxílio às enfermeiras que denunciaram o caso”. Ainda segundo a direção, as funcionárias foram acompanhadas por psicólogos e durante o depoimento à polícia, por advogados. “As enfermeiras estão preocupadas, mas elas sabem que têm o acolhimento da instituição”, explicou a enfermeira Maria Aparecida, responsável pelo setor.

Metade dos partos é por cesariana

No Hospital Heloneida Studart, 52% dos partos realizados são por meio de cesariana. Segundo o diretor, o percentual elevado é porque muitas das pacientes que chegam à unidade, que só atende a casos de alto risco, não tiveram acompanhamento pré-natal.

“Existe um protocolo do Ministério da Saúde e a gente segue essa determinação. Há um índice alto de cesariana porque muitas mães não têm pré-natal, e aqui no hospital você tem um pré-natal bem acompanhado, mas as que são encaminhadas de fora vêm em outra situação”, comentou Viana.

Durante a visita ao hospital, a deputada Renata Souza questionou o cumprimento de medidas que garantam, por exemplo, o acompanhamento da doula durante o parto e a entrega voluntária de recém-nascidos para a adoção.

Curiosamente, em abril de 2022, o Heloneida Studart recebeu do então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, o título de ‘Hospital Amigo da Criança’. A certificação de qualidade é conferida às unidades que cumprem critérios destinados à garantia do aleitamento materno e o cuidado humanizado à mulher e à criança no pré-parto, parto e pós-parto. Na ocasião, outras 307 unidades de Saúde contavam com a certificação.

Reposição de estoques de leite materno e de sangue

A deputada também vistoriou diversos setores, como a UTI, o Banco de Leite Humano e a sala S.O.S. Mulher, destinada a acolher e auxiliar mulheres vítimas de violência sexual. Dentre as principais demandas do hospital, está a reposição de estoques de leite materno e de sangue.

“Uma campanha permanente é fundamental para suprir as necessidades do banco de leite do hospital. A gente também viu que o estoque de sangue está muito abaixo do mínimo para que o hospital funcione devidamente”, disse a deputada.

Entenda o caso de alessandra

Alessandra, na saída do Hospital Souza Aguiar (Foto: Raoni Alves / G1)

Agosto de 2022: Alessandra sente dores e tem sangramentos. Exames apontam miomas no útero, e especialistas recomendam a retirada imediata. Ela começa a se preparar e passa a tentar agendar o procedimento na rede pública.

  • 30 de janeiro: Quase seis meses depois, Alessandra recebe uma ligação do Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, convocando-a para a cirurgia.
  • 3 de fevereiro: Alessandra se interna e é operada pela manhã. À noite, médicos detectam uma hemorragia.
  • 4 de fevereiro: o Hospital da Mulher avisa à família que terá de fazer em Alessandra uma histerectomia total — a retirada completa do útero.
  • 5 de fevereiro: parentes foram visitar Alessandra, mas ela estava intubada e, segundo eles, com as pontas dos dedos esquerdo escurecidas. Braços e pernas estavam enfaixados. Segundo a mãe, falaram que a paciente “estava com frio”.
  • 6 de fevereiro: a família é avisada de que Alessandra — ainda intubada — terá que ser transferida para o Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (Iecac), em Botafogo. Segundo parentes, o braço da passista estava praticamente preto. Um médico lhes diz que iria drenar o braço, “que já estava começando a necrosar”.
  • 10 de fevereiro: o Iecac informa que a drenagem não deu certo e que “ou era a vida de Alessandra, ou era o braço”, porque a necrose iria se alastrar. A família autoriza a amputação. A cirurgia é feita, mas o estado da mulher se agrava, com o rim e o fígado quase parando e com risco de uma infecção generalizada.
  • 12 de fevereiro: Alessandra é extubada.
  • 15 de fevereiro: A passista recebe alta.
  • 28 de fevereiro: A mulher volta ao Iecac para a revisão da cirurgia de amputação. Segundo a mãe, o médico se assusta com o estado dos pontos no braço e na barriga e recomenda que elas voltem ao Heloneida Studart. A família, porém, decide não retornar à unidade e passa a buscar alternativas.
  • 4 de março: após ser recusada em diferentes hospitais, Alessandra é internada no Hospital Maternidade Fernando Magalhães e transferida para o Hospital Municipal Souza Aguiar.
  • 4 de abril: Alessandra recebe alta.

Com informações da Alerj, Coren-RJ e G1

 

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