Durante uma internação por pneumonia grave, Meline Stefani Sampaio, de 5 anos, teve que ficar 37 dias intubada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Sabará Hospital Infantil, o que causou uma estenose grau 4, na qual 100% da traqueia permanece fechada, impedindo a passagem de ar.

Foi então, que ela precisou ser submetida a uma traqueostomia, procedimento cirúrgico para colocação de uma cânula na traqueia, liberando as vias aéreas para permitir a respiração. Esta é uma alternativa usada em muitos pacientes em estado grave para estabelecer a respiração daqueles que apresentam obstrução à passagem de ar na laringe.

Desde o ano de 2022, o dia 18 de fevereiro é lembrado no Brasil como o Dia Nacional da Criança Traqueostomizada, conforme previsto na Lei 14.249/21, publicada no Diário Oficial no final de 2021 .O objetivo é promover ações de conscientização e de esclarecimento a profissionais da saúde, pais, responsáveis e familiares sobre os cuidados necessários às crianças que passaram por esse procedimento cirúrgico.

“No começo, tudo era novo então para nós era muito difícil aceitar a traqueostomia, mas depois vimos que esse procedimento foi melhor para ela. Meline já fez algumas cirurgias e agora em março fará uma para reconstrução da traqueia com enxerto e colocação de molde”, explica a mãe Rosana Stefani Sampaio.

Ela conta que a falta de informação sobre o significado da traqueostomia é grande ainda, assim como o preconceito em relação a pessoas que tiveram que passar por este procedimento. E muitas vezes, o preconceito vem mais dos adultos do que das próprias crianças.

“Algumas ações de pessoas nos deixam constrangidos, estamos fazendo de tudo para ela não sentir isso. As crianças reagiram bem na escola, sua inclusão foi muito boa, as crianças a abraçaram”, diz a mãe de Meline.

Esse foi o primeiro ano dela na escolinha presencial. Durante as atividades, a professora fazia de tudo para não dar atividades que usassem o sopro por ela não conseguir soprar ainda. As pessoas chegam e perguntam para minha filha: qual seu nome? Como ela não responde, aí vamos explicar o motivo dela não responder. Ela está crescendo e entendendo bem o que já está acontecendo. Estamos dando todo o suporte que podemos para nossa filha”, conta a mãe.

Crianças podem permanecer até anos com a cânula

traqueostomia é uma técnica médica que consiste na criação de uma abertura na traqueia, proporcionando uma via alternativa para a passagem de ar em direção aos pulmões. A técnica é aplicada em pessoas que sofrem com a obstrução das vias aéreas superiores e da laringe ou que necessitam de suporte ventilatório prolongado por complicações que as impedem de manter a respiração espontaneamente e de forma autônoma.

O procedimento cirúrgico é considerado de baixa complexidade e dura cerca de 40 minutos. O médico cria um orifício de abertura da traqueia no pescoço e insere uma cânula (um tubo) para facilitar a chegada de ar até os pulmões, promovendo assim uma rota alternativa à passagem e restabelecendo a respiração do paciente.

“Após a cirurgia, é necessária uma assistência rigorosa da equipe profissional e também da família para que esta criança possa viver com qualidade”, explica o otorrinolaringologista Rodrigo Guimarães Pereira, presidente da Academia Brasileira de Otorrinolaringologia Pediátrica (ABOPe)

O tempo necessário de traqueostomia depende de cada diagnóstico e também do cuidado com a manutenção dos materiais. É essencial realizar a troca da cânula regularmente, de acordo com a recomendação médica. Para evitar que o paciente fique traqueostomizado mais do que o necessário, é importante fazer o acompanhamento médico e tirar todas as dúvidas no momento das consultas.

Saramira Cardoso Bohadana, otorrinolaringologista e coordenadora do Programa Aerodigestivo do Sabará Hospital Infantil, afirma que em determinadas situações, as crianças precisarão permanecer durante algum tempo (que podem ser até anos) com a cânula, e que, apesar disso, é possível oferecer qualidade de vida para esses pacientes.

Principais causas da traqueostomia em crianças

Com os avanços das técnicas de suporte de vida e o tratamento de doenças crônicas, cada vez mais aumenta o número de pacientes portadores de condições que, temporariamente ou permanentemente, utilizam esse tipo de dispositivo. Estima-se que duas em cada 100 crianças submetidas à intubação orotraqueal prolongada necessitem de traqueostomia, a maioria delas menores de 1 ano de idade.

Um levantamento de 2023, produzido pela ABOPe com 11 centros brasileiros especializados no atendimento e realização dessa cirurgia em crianças e que participaram da Campanha do Dia Nacional da Criança Traqueostomizada, revelou que houve crescimento de 23% no número de procedimentos em apenas um ano. Em 2021, 257 crianças de 0 a 3 anos realizaram o procedimento de traqueostomia. Em 2022, esse número subiu para 318.

A estenose, que consiste no estreitamento de laringe ou traqueia por intubação prolongada, como ocorreu com Meline, é um dos principais motivos que levam as crianças a passarem por traqueostomia, de acordo com dados da ABOPe e da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF). 

Outros motivos são disfagia, descrita como a dificuldade em deglutição; cardiopatias, que são condições capazes de afetar o coração e o sistema vascular; doenças pulmonares (incluindo pneumonias de repetição) e neurológicas; malformações craniofaciais e nas vias aéreas; e anomalias vasculares, ou seja, qualquer mudança na estrutura ou no crescimento dos vasos sanguíneos.

Relativamente comum na população pediátrica, inclusive em bebês com menos de 1 ano, o procedimento é indicado nos casos de intubação prolongada para ventilação mecânica e também tumores na face e no pescoço; paralisia bilateral das cordas vocais; trauma no pescoço, entre outros.

Cuidado para evitar complicações e mortes

Número de crianças submetidas a traqueostomia no Brasil aumentou 23% entre 2021 e 2022 (Foto: Wynitow Butenas)

De acordo o 1º Consenso Clínico e Recomendações Nacionais sobre Crianças Traqueostomizadas da Academia Brasileira de Otorrinolaringologia Pediátrica (ABOPe) e da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), as taxas de mortalidade relacionadas à traqueostomia em crianças variam de 0% a 5,9%, de acordo com a literatura internacional. Num estudo brasileiro de 2009, no Rio Grande do Sul, foi identificada a mortalidade de 4%

“Além dos riscos, a traqueostomia tem um grande impacto na vida da criança e sua família, com interferências nas esferas social, física e psicológica. Precisamos focar em todos os aspectos envolvidos, porque é uma situação muito complexa para ser deixada de lado”, ressalta o otorrinolaringologista pediátrico Fabiano Gavazzoni, do Hospital Pequeno Príncipe.

O cuidado com as crianças traqueostomizadas exige um atendimento multidisciplinar para a diminuição do risco de complicações e morte. A traqueostomia ajuda na respiração, mas tem implicações que precisam ser tratadas por profissionais multidisciplinares. Por isso, o Dia Nacional da Criança Traqueostomizada tem como um de seus objetivos salientar a necessidade de assistência profissional adequada para atender essas crianças.

“A criança não consegue se comunicar direito, nem tossir, e pode até apresentar uma dificuldade de engolir. Sendo assim, precisa de fonoaudiólogo para trabalhar a deglutição e a fonação e de uma fisioterapeuta para ajudar o pulmão a trabalhar melhor”, explica o médico.

Cuidados importantes à criança traqueostomizada

Pacientes que passam por esse procedimento cirúrgico enfrentam um cenário complexo de recuperação. “Após a alta hospitalar, os familiares ficam perdidos em relação aos cuidados, como a aspiração adequada, trocas regulares da cânula, a avaliação adequada da via aérea e se há possibilidade de algum dia retirar essa traqueostomia e respirar novamente pela via aérea superior”, explica a otorrinolaringologista Claudia Schweiger.

O otorrinolaringologista pediátrico Fabiano Gavazzoni, do Hospital Pequeno Príncipe, também lembra a importância de orientar pais, responsáveis e familiares sobre os cuidados a serem tomados com as crianças que passaram pelo procedimento.

“Existe um risco alto de mortalidade envolvendo a traqueostomia em caso de obstrução da cânula, especialmente naquelas crianças que têm fechamento completo da via natural. E como médicos temos o papel de prover as famílias de informações e orientações. Uma criança que passou pelo procedimento não pode ser abandonada, o profissional de saúde precisa dar sequência ao atendimento, e os familiares não podem ir para casa sem entender todas as necessidades de seu filho”, reforça.

Com acompanhamento médico contínuo, meninos e meninas traqueostomizados podem ter qualidade de vida, bem-estar e segurança, garantindo outra questão levantada por Gavazzoni: o direito dessas crianças estarem inseridas socialmente, ou seja, ir à escola, brincar e divertir-se com os amigos.

“Ela já tem uma série de limitações e restrições, não podemos excluí-la ainda mais. O que precisamos é garantir uma certa assistência nos espaços frequentados pela criança”, pontua o otorrino.

Manual ensina famílias a lidar com crianças traqueostomizadas

Crianças que passaram por esse procedimento precisam de atendimento e procedimentos de assistência padronizados para evitar complicações com a saúde e reduzir as internações hospitalares e casos de óbitos. No entanto, após a alta hospitalar, um dos problemas comuns é a falta de destino para o acompanhamento médico da criança.

Um manual feito pela ABOPe, que pode ser acessado gratuitamente no site,  tem auxiliado famílias e profissionais de saúde em como proceder com alguns cuidados exclusivos das crianças traqueostomizadas.

Entre as orientações está o manejo da cânula de plástico – produto inserido no orifício da traqueia para ajudar na passagem do ar – que precisa ser substituída a cada um a três meses, conforme as diretrizes do fabricante. Embora a troca deva ser executada por um profissional de saúde qualificado, é importante que a família esteja treinada para trocas também.

“Mau cheiro ou mudança na cor da secreção pode indicar infecção, por isso, é importante sempre lavar as mãos antes de cuidar da traqueostomia. Além de manter a pele ao redor do procedimento limpa e seca”, destaca o presidente da ABOPe.

A cânula é presa no pescoço por meio de um cadarço ou velcro confeccionado artesanalmente que também precisa ser trocado, segundo orientações do manual.

No momento da alimentação é preciso fazer adaptações, como começar com comidas leves e pastosas, introduzindo pequenos pedaços aos poucos até a criança se acostumar com a alimentação normal. E para ingerir algum líquido, é necessário que o paciente esteja sentado para evitar vômito.

“Se a criança se engasgar, o cuidador ou responsável deve agir rapidamente batendo firmemente em suas costas. É importante ressaltar que não se deve colocar o dedo na boca da criança, pois isso pode empurrar o alimento para a via errada, agravando a situação”, afirma Pereira.

Atendimento especializado em traqueostomia infantil

Além das famílias, é essencial que os hospitais estejam preparados para o tratamento e cuidado, pois a falta de conhecimento na assistência adequada pode gerar complicações, como riscos de asfixia, infecções, danos na própria traqueia ou dificuldades na cicatrização.

“Essas crianças enfrentam uma luta e um desafio diário e, por isso, é tão importante que as famílias tenham para onde recorrer e que os pais sejam treinados para lidar com esses casos. Dessa forma, os manuais distribuídos e as palestras nos hospitais podem ajudar no melhor manejo dessas crianças”, finaliza a médica.

Dentre os 11 centros especializados no país está o Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, que possui um Ambulatório de Traqueostomia que funciona uma vez por semana para acompanhamento de pacientes que já receberam alta hospitalar, mas continuam traqueostomizados. O atendimento e orientação às famílias são realizados por enfermeiros especializados.

Esses profissionais também são responsáveis pelo encaminhamento à equipe multiprofissional que presta assistência na retaguarda e é composta por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e fonoaudiólogos.

Em fevereiro de 2023, um total de 82 crianças traqueostomizadas eram atendidas pelo hospital, 78% delas com idade entre 1 e 10 anos, e a média de novos casos no ambulatório gira em torno de cinco atendimentos por mês, além dos pacientes internados que também são assistidos pelas equipes especializadas.

Já no Sabará Hospital Infantil, em São Paulo, mais de 100 crianças foram decanuladas, por meio de atendimento personalizada, com foco nas necessidades de cada paciente. O programa conta com uma equipe multiprofissional especializada por pneumopediatra, gastropediatra, fonoaudióloga, nutróloga e otorrinolaringologista, especialistas de vias aéreas.

“Nosso objetivo é proporcionar melhores condições de vida para essas crianças e suas famílias, para irem para a escola, frequentar espaços sociais e promover o conhecimento sobre a traqueostomia”, afirma Saramira Cardoso Bohadana, otorrinolaringologista e coordenadora do Programa Aerodigestivo  do hospital.

Agenda Positiva

Campanha do Dia Nacional da Criança Traqueostomizada

A Academia Brasileira de Otorrinolaringologia Pediátrica e a Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial promovem a Campanha do Dia Nacional da Criança Traqueostomizada, entre os dias 18 a 23 de fevereiro, visando aumentar a visibilidade das crianças com traqueostomia e destacar a importância de uma assistência profissional adequada para esse grupo específico.

Durante a semana, centros especializados em atendimento e realização de traqueostomia em crianças irão oferecer orientações para os responsáveis de crianças que passaram pelo procedimento, bem como capacitar os profissionais que fazem parte da rede de assistência aos pacientes. Além disso, serão distribuídos manuais gratuitos sobre os cuidados específicos necessários para crianças com traqueostomia.

A campanha também tem como objetivo despertar o olhar dos governantes para as necessidades de suprir a demanda de profissionais de saúde especializados na rede pública, bem como capacitar pais e familiares sobre os cuidados a serem tomados com as crianças que passaram pelo procedimento.

Participam da campanha: Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo; Instituto de Otorrinolaringologia Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Unicamp, em Campinas (SP); Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP), Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS), Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (GO); Instituto Fernandes Figueira, do Rio de Janeiro (RJ), e Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba (PR).

Além de ações presenciais, os canais da ABOPe e da ABORL-CCF nas redes sociais propagam instruções e orientações de cuidados indicadas por especialistas. As informações poderão ser consultadas nos perfis do Instagram @otorrinoevoce  e @abopepediatrica.

Com Assessorias

 

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