Uma ilha chamada depressão: o relato profundo de um jornalista que vive a doença

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Após ler seu relato no Facebook contando como, mesmo lutando contra a depressão, conseguiu passar em um concurso público, convidei o querido jornalista Ricardo França para compartilhar com a gente, aqui na seção ‘Eu Vivo”, suas impressões sobre esse tema tão delicado e ainda tão pouco compreendido.

“Tá aí… Obrigado por me deixar falar”, me diz ele no dia seguinte, com o texto, impecável, pronto. Foi em uma das clínicas onde ficou internado que ele tirou a foto que ilustra esse texto. “Não podia escrever em laptop, computador, celular… só em máquina de escrever. O meu pai levou essa máquina, minha, para mim”, conta ele. “Eu interajo com os teclados. Ponto de fuga. Acho que eles entenderam isso e deixaram”, comenta.

Neste ‘Janeiro Branco’, dedicado a falar sobre transtornos emocionais e doenças mentais que cada vez mais atormentam a vida contemporânea, a leitura deste relato é imprescindível e traz à tona não apenas um drama pessoal, mas a análise lúcida de quem viveu na pele outro grave problema: a estigmatização da doença e o confinamento dentro de clínicas especializadas em tratamento de transtornos mentais. Seu depoimento nos revela um mundo o qual muitos desconhecem e traz à tona um modelo de tratamento que precisa ser revisto e olhado com mais atenção, especialmente no campo da saúde pública. Confiram:

“De tempos em tempos, tenho que dormir com um balde ao lado da cama. Esse balde, nesses períodos, passa o dia ao meu lado. Ao lado da cama. Os vômitos, a cada meia hora, vão me deixando pálido, com lábios secos. Após cada vômito, suo frio e sinto calor, tenho que beber água. Logo depois sinto frio e peço cobertor. Às vezes três cobertores. Embaixo deles tenho tremedeiras. Sinto falta de ar e medo. Um medo sem propósito, do futuro. Chegam-me as culpas do passado. E esses momentos de pânico à vezes duram cerca de duas horas.

Também penso que sou perseguido. E sei que muitas vezes também crio universos e crio universos e entro neles. E interajo com eles. Muita coisa é real, mas o real torna-se um monstro. Há caos, confusão mental, e há vazio. Uma sensação de queda em câmera lenta. De andar sozinho na trilha de uma floresta ao anoitecer. De aparecer numa ilha que não existe em mapa algum. Coberta por uma névoa e repleta de angústia. Essa ilha é a minha cama, associei depois. E a angústia é a névoa que me isola.

Em outras ocasiões, quando não há nuvens no céu, tenho mil ideias. Faço projetos. Tenho convulsões poéticas. Arrumo as gavetas, os livros, meus arquivos em word, jogo xadrez com a minha namorada. Eu que ensinei à ela. Vou ao shopping, pago contas. Brinco com o meu coelho. Mas de repente, acontece alguma coisa fora do Script, que não estava nos planos. Alguma coisa que não deu certo, ou que eu pensava que não deveria ser simplesmente da forma como foi. E a gangorra é acionada. A montanha russa do humor deflagra em mim um processo interno que eu não controlo. E que eu externo. De diversas formas.

Falei de ações e de projetos quando estou no alto da gangorra. Comecei inglês, não terminei. Comecei pós-graduação, não conseguir seguir adiante. Criei uma escolinha de xadrez que ficou no papel. Comprei livros que não consegui ler, CDs que não consegui ouvir. Uma moto que está se acabando no quintal, pois não consegui tirar carteira. A única coisa que foi à frente foram os poemas.

Essas ogivas de temperamento, que mais tarde vim a descobrir tratar-se de bipolaridade – transtorno da família da depressão – me fizeram perder amigos, familiares, empregos, namoradas, oportunidades, amor próprio, respeito. Então, estou falando da depressão e de seus transtornos derivados. Uma doença silenciosa, contagiosa em seus efeitos naqueles que convivem com um depressivo. Mas que é pessoal e intransferível.

Considerada por quem não a conhece, em resumo, como ‘frescura’, a depressão é reconhecida como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) . Eu hoje sei que faço parte de uma população mundial de 350 milhões de depressivos. E que depressão incapacita e mata. E ela faz isso covardemente, aos poucos. Tomo remédios. Mas tomo bebidas alcoólicas. Os remédios me deixam bobo. A bebida (meu anestésico e ponto de fuga) me deixa insuportável, intratável, idiota. Os dois somados potencializam a capacidade de me imbecilizar. Mas compreendo a necessidade dos remédios.

Nos últimos dois anos, passei por cinco clínicas terapêuticas. Tive que me afastar do trabalho, pois as crises passaram a ocorrer em intervalos mais curtos entre uma e outra e cada vez mais intensas. Não gostei do que vi. Dos métodos. O tratamento não é individualizado, mas massificado, comercial.

Aprendi a diferença entre os principais profissionais que cuidam dos pacientes nessas clínicas: o papel do psiquiatra, do psicanalista, do psicólogo, do terapeuta e o tal do ‘técnico’. Este último, geralmente, um ex-viciado contratado pela clínica para mediar reuniões no estilo do NA e do AA. Sem formação profissional. É esse cara que passa a maior parte do tempo com os pacientes.

Em duas delas tive que sair porque alguns pacientes – muitos deles adictos de drogas pesadas, como cocaína, heroína e crack, agressivos; outros, traficantes viciados e algumas mulheres de traficantes – queriam ‘me pegar’ quando sabiam que eu era servidor da Secretaria de Estado de Segurança. Eu falava nas dinâmicas de grupo. Pensaram que eu era X-9 (informante da polícia). Na primeira, um grupo de 20 pacientes havia combinado de me ‘pegar’ no dia seguinte, na área externa. Uma paciente soube e me avisou. Comuniquei à direção da clínica e fui embora.

Acredito que o foco do tratamento das pessoas portadoras de síndromes depressivas, bipolaridade, síndrome do pânico, mania de perseguição, deve ser revisto. Mas também acredito que o principal tratamento é a aceitação, a inclusão, o carinho, a compreensão, o amor daqueles que convivem, na escola, no trabalho, em casa, na vizinhança, com o depressivo. Uma boa conversa é o melhor comprimido contra a exclusão e o preconceito. São tribunais que condenam 350 milhões de pessoas ao confinamento nas ‘ilhas presídios’ que existem dentro de cada uma delas.

* Ricardo França é jornalista, 48 anos, com passagens em várias empresas e veículos de comunicação. Criou recentemente a página Pílulas de Desassossego no Facebook

Leia também  – Janeiro Branco: uma campanha pelo bem da saúde mental

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